Charge do jornal Correio Braziliense |
Era
quase dez horas da noite, quando Jair Rodrigues, como fazia todos os dias,
seguia sentido à sauna de seu sítio em Cotia, na Grande São Paulo, para seu
momento de descanso e relaxamento. Mas
desta vez foi diferente. Ao entrar, o cantor logo notou que não estava sozinho,
porém, de imediato, não conheceu a figura cabisbaixa que ali se encontrava, toda
trajada de preto e parecendo envergonhada, e foi logo fazendo amizade:
- Ô gente boa, por que esta cabeça baixa aí? Canta
comigo: Tristeza, por favor vá embora / Minha alma que chora, está vendo o meu
fim / Fez do meu coração a sua moradia /
Já é demais o meu penar / Quero voltar àquela vida de alegria / Quero de
novo cantar.
Mais
envergonhada ainda, a figura se voltou para Jair e se identificou:
- Seu Jair, minha missão neste mundo
nunca é fácil, mas tem dias que meu trabalho é ainda mais árduo e penoso. E, desta vez, tenho certeza que o Brasil inteiro não vai me perdoar. Sou a morte e,
apesar de ser sua fã e ouvir que o senhor queria ficar mais um pouco por aqui,
teremos um programa especial de Dia das Mães no céu com a apresentação da Hebe
Camargo e já anunciamos as presenças do ator José Wilker, do humorista
Canarinho, do locutor Luciano do Valle e dos cantores Reginaldo Rossi, Wando, Nelson
Ned, além do dueto principal entre o “cachorrão” Jair Rodrigues e a “pimentinha”
Elis Regina. Ai, não sei nem o que dizer nesta hora.
Só
aí Jair reconhece sua algoz, mas não perde a cordialidade:
- Puxa vida, dona morte, mas será que não
dava pra esperar passar a Copa do Mundo pelo menos? Vamos fazer o seguinte, eu vou
buscar um café pra conversarmos melhor. Eu tô com a agenda de shows lotada e
não posso deixar meu povo na mão. Mas também não vou desrespeitar as ordens do “Homem
lá de cima”, né...(E sai da sauna para preparar um cafezinho para a morte,
voltando logo em seguida)
A
morte está desconsolada com tão desonrosa missão:
- O senhor tá muito conservado Seu
Jair. Eu venho o acompanhando a semana toda, e não acreditei quando vi o senhor
plantando bananeira no palco em seus dois últimos shows. Eu aqui, vindo tirar
sua vida, e sendo tão bem tratada, o cafezinho tá uma delícia. Será que seria
muito abuso da minha parte, pedir para o senhor cantar um trechinho de “Disparada”?
Jair
nem titubeia:
-
Prepare
o seu coração /Pras coisas /Que eu vou contar/Eu venho lá do sertão/Eu venho lá
do sertão/Eu venho lá do sertão/E posso não lhe agradar/Aprendi a dizer não/Ver
a morte sem chorar/E a morte, o destino, tudo/A morte e o destino, tudo/Estava
fora do lugar/Eu vivo pra consertar...
Há, há, há,
há, há...Quantos anos cantando isso e eu nunca imaginei cantar para a morte. A
senhora é bem mais simpática do que falam por aí.
A
morte está desesperada:
- Nossa,
realmente, Seu Jair, o senhor é um ser iluminado, e quero que compreenda que só
cumpro ordens. Esta música mexe com meus sentimentos. Mas uma coisa posso lhe
assegurar, o lugar que lhe está reservado é maravilhoso. Muitos amigos o
esperam e sua obra inspirará muitas gerações ainda. Ai, eu num quero nem ouvir
o que todos vão dizer quando ficarem sabendo o que fiz...
Jair
emenda:
-Deixa que digam / Que pensem, que falem /
Deixa isso prá lá / Vem pra cá / O que é que tem / E eu não tô fazendo nada /
Nem você também / Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?
Vai
Dona Morte, faz a mãozinha comigo, pra baixo, pra cima...Aí, aprende rápido
hein....Tira essa tristeza do rosto, vamos cantar! Ê beleza, Nossa
Senhora...ha, há, há...
A morte parece encantada com o ídolo e nem percebe que já são
quase 6h da manhã. E Jair mostra que além de ter sido o precursor do rap
brasileiro, bem sucedido na bossa-nova, no samba e na MPB, também marcou o
sertanejo com sua voz inconfundível. Ao ver que a tristeza e desconsolo da
morte permanece, ele canta:
-Sertaneja/Porque
choras quando eu canto?/Sertaneja/Se este canto é todo teu/Sertaneja/Pra
secar os teus olhinhos/Vá ouvir os passarinhos/Que cantam mais do
que eu/A tristeza do seu pranto/É mais triste quando eu canto/A
canção que eu te escrevi/E os teus olhos neste instante/Brilham
mais que a mais brilhante das estrelas que eu já vi...
Olha, Dona Morte, faça seu serviço
logo, antes que eu me arrependa. Eu tive uma carreira só de alegria. Cantei com
os maiores artistas deste país. Até com o Rei Pelé eu cantei. Ganhei os grandes
festivais. Recebi todas as homenagens que um homem pode querer. Tenho um casal
de filhos maravilhosos, com carreiras bem sucedidas também, netos...E vivi por
mais de quatro décadas com o grande amor da minha vida, a Clodine. Tenho mais
de um milhão de amigos e sempre tive esta alegria de viver, e não ser vai agora
na hora da morte que vou ficar de mal humor. Mas vou preparar mais um cafezinho
pra nós antes de irmos...
A
morte percebe que o sol já está alto e os funcionários do sítio já estão
trabalhando. E alerta Jair que chega com o café da manhã:
-Realmente é um dia triste pra mim.
Missão difícil de cumprir, mas tem que ser agora, Seu Jair. Prometo que não lhe
causarei dor alguma. Mas que é muito triste é!
Jair aproveita a deixa e completa:
-Triste madrugada foi aquela/que eu
perdi meu violão/não fiz serenata pra ela/e nem cantei uma linda canção!
O
cantor nem percebe e já está subindo. No céu, são inúmeros os amigos que o
aguardam para agitar a comunidade celeste com sua alegria e irreverência
contagiante. A morte já não o acompanha, mas sim vários anjos que o levam para
a Vida Eterna, e todos vão entoando ao seu lado:
-Ah! Ah! Ah! tô indo
agora pra um lugar todinho meu/Quero uma rede preguiçosa pra deitar/Em
minha volta sinfonia de pardais/Cantando para a majestade, o sabiá/A
majestade , o sabiá...
Altair Nogueira é publicitário, editor
do blog www.amarretanabigorna.blogspot.com.br
e fã de Jair Rodrigues
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