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sexta-feira, 9 de maio de 2014

“Tô indo agora pra um lugar todinho meu...”

Charge do jornal Correio Braziliense
Era quase dez horas da noite, quando Jair Rodrigues, como fazia todos os dias, seguia sentido à sauna de seu sítio em Cotia, na Grande São Paulo, para seu momento de descanso e relaxamento. Mas desta vez foi diferente. Ao entrar, o cantor logo notou que não estava sozinho, porém, de imediato, não conheceu a figura cabisbaixa que ali se encontrava, toda trajada de preto e parecendo envergonhada, e foi logo fazendo amizade:
- Ô gente boa, por que esta cabeça baixa aí? Canta comigo: Tristeza, por favor vá embora / Minha alma que chora, está vendo o meu fim / Fez do meu coração a sua moradia /  Já é demais o meu penar / Quero voltar àquela vida de alegria / Quero de novo cantar.
Mais envergonhada ainda, a figura se voltou para Jair e se identificou:
            - Seu Jair, minha missão neste mundo nunca é fácil, mas tem dias que meu trabalho é ainda mais árduo e penoso. E, desta vez, tenho certeza que o Brasil inteiro não vai me perdoar. Sou a morte e, apesar de ser sua fã e ouvir que o senhor queria ficar mais um pouco por aqui, teremos um programa especial de Dia das Mães no céu com a apresentação da Hebe Camargo e já anunciamos as presenças do ator José Wilker, do humorista Canarinho, do locutor Luciano do Valle e dos cantores Reginaldo Rossi, Wando, Nelson Ned, além do dueto principal entre o “cachorrão” Jair Rodrigues e a “pimentinha” Elis Regina. Ai, não sei nem o que dizer nesta hora.
Só aí Jair reconhece sua algoz, mas não perde a cordialidade:
            - Puxa vida, dona morte, mas será que não dava pra esperar passar a Copa do Mundo pelo menos? Vamos fazer o seguinte, eu vou buscar um café pra conversarmos melhor. Eu tô com a agenda de shows lotada e não posso deixar meu povo na mão. Mas também não vou desrespeitar as ordens do “Homem lá de cima”, né...(E sai da sauna para preparar um cafezinho para a morte, voltando logo em seguida)
A morte está desconsolada com tão desonrosa missão:
            - O senhor tá muito conservado Seu Jair. Eu venho o acompanhando a semana toda, e não acreditei quando vi o senhor plantando bananeira no palco em seus dois últimos shows. Eu aqui, vindo tirar sua vida, e sendo tão bem tratada, o cafezinho tá uma delícia. Será que seria muito abuso da minha parte, pedir para o senhor cantar um trechinho de “Disparada”?
Jair nem titubeia:
            - Prepare o seu coração /Pras coisas /Que eu vou contar/Eu venho lá do sertão/Eu venho lá do sertão/Eu venho lá do sertão/E posso não lhe agradar/Aprendi a dizer não/Ver a morte sem chorar/E a morte, o destino, tudo/A morte e o destino, tudo/Estava fora do lugar/Eu vivo pra consertar...
            Há, há, há, há, há...Quantos anos cantando isso e eu nunca imaginei cantar para a morte. A senhora é bem mais simpática do que falam por aí.
A morte está desesperada:
            - Nossa, realmente, Seu Jair, o senhor é um ser iluminado, e quero que compreenda que só cumpro ordens. Esta música mexe com meus sentimentos. Mas uma coisa posso lhe assegurar, o lugar que lhe está reservado é maravilhoso. Muitos amigos o esperam e sua obra inspirará muitas gerações ainda. Ai, eu num quero nem ouvir o que todos vão dizer quando ficarem sabendo o que fiz...
Jair emenda:
            -Deixa que digam / Que pensem, que falem / Deixa isso prá lá / Vem pra cá / O que é que tem / E eu não tô fazendo nada / Nem você também / Faz mal bater um papo assim gostoso com alguém?
            Vai Dona Morte, faz a mãozinha comigo, pra baixo, pra cima...Aí, aprende rápido hein....Tira essa tristeza do rosto, vamos cantar! Ê beleza, Nossa Senhora...ha, há, há...
A morte parece encantada com o ídolo e nem percebe que já são quase 6h da manhã. E Jair mostra que além de ter sido o precursor do rap brasileiro, bem sucedido na bossa-nova, no samba e na MPB, também marcou o sertanejo com sua voz inconfundível. Ao ver que a tristeza e desconsolo da morte permanece, ele canta:
            -Sertaneja/Porque choras quando eu canto?/Sertaneja/Se este canto é todo teu/Sertaneja/Pra secar os teus olhinhos/Vá ouvir os passarinhos/Que cantam mais do que eu/A tristeza do seu pranto/É mais triste quando eu canto/A canção que eu te escrevi/E os teus olhos neste instante/Brilham mais que a mais brilhante das estrelas que eu já vi...
            Olha, Dona Morte, faça seu serviço logo, antes que eu me arrependa. Eu tive uma carreira só de alegria. Cantei com os maiores artistas deste país. Até com o Rei Pelé eu cantei. Ganhei os grandes festivais. Recebi todas as homenagens que um homem pode querer. Tenho um casal de filhos maravilhosos, com carreiras bem sucedidas também, netos...E vivi por mais de quatro décadas com o grande amor da minha vida, a Clodine. Tenho mais de um milhão de amigos e sempre tive esta alegria de viver, e não ser vai agora na hora da morte que vou ficar de mal humor. Mas vou preparar mais um cafezinho pra nós antes de irmos...
A morte percebe que o sol já está alto e os funcionários do sítio já estão trabalhando. E alerta Jair que chega com o café da manhã:
            -Realmente é um dia triste pra mim. Missão difícil de cumprir, mas tem que ser agora, Seu Jair. Prometo que não lhe causarei dor alguma. Mas que é muito triste é!
Jair aproveita a deixa e completa:
            -Triste madrugada foi aquela/que eu perdi meu violão/não fiz serenata pra ela/e nem cantei uma linda canção!
O cantor nem percebe e já está subindo. No céu, são inúmeros os amigos que o aguardam para agitar a comunidade celeste com sua alegria e irreverência contagiante. A morte já não o acompanha, mas sim vários anjos que o levam para a Vida Eterna, e todos vão entoando ao seu lado:
            -Ah! Ah! Ah! tô indo agora pra um lugar todinho meu/Quero uma rede preguiçosa pra deitar/Em minha volta sinfonia de pardais/Cantando para a majestade, o sabiá/A majestade , o sabiá...

Altair Nogueira é publicitário, editor do blog www.amarretanabigorna.blogspot.com.br e fã de Jair Rodrigues

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